Já ouviu falar da miocardiopatia arritmogénica?

Uma doença rara que pode causar morte súbita
Coração
Doenças crónicas
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Aos 47 anos, Joana Rodrigues foi diagnosticada com miocardiopatia arritmogénica. Nuno Cardim e Luís Brandão, cardiologistas CUF, esclarecem sobre esta doença.

“As doenças cardiovasculares são a principal causa de mortalidade em Portugal”, destaca Nuno Cardim, cardiologista. Contudo, as doenças do coração não são todas iguais. O especialista acrescenta que, “dentro destas doenças, a doença cardíaca mais comum e mais grave é a doença das artérias coronárias, aquela que causa angina de peito e enfarte agudo do miocárdio. No entanto, existem outras doenças, por exemplo, miocardiopatias que são doenças que, isoladamente, são doenças raras, mas que, no conjunto das várias miocardiopatias, são uma causa importante de mortalidade e mortalidade cardiovascular”. Joana Rodrigues foi diagnosticada aos 47 anos com miocardiopatia arritmogénica, uma doença do músculo cardíaco com arritmias frequentemente fatais. Neste vídeo, os cardiologistas Luís Brandão e Nuno Cardim explicam tudo sobre a doença - das dificuldades no diagnóstico às opções de tratamento.



Miocardiopatia arritmogénica: uma doença cardíaca rara

“As miocardiopatias são doenças do miocárdio (o músculo cardíaco) e existem vários tipos. A mais frequente é a miocardiopatia hipertrófica, mas existe uma outra muito grave, a miocardiopatia arritmogénica”, afirma o cardiologista Nuno Cardim. Esta é ”uma doença hereditária, geralmente associada a uma mutação de um gene que pode ser transmissível numa percentagem variável dos casos, que afeta cerca de uma em cada 5000 pessoas”, salienta Luís Brandão. Mas de que forma afeta esta doença o nosso coração? O cardiologista explica: “É uma doença que maioritariamente afeta o ventrículo direito, mas em alguns doentes pode afetar ambos ou exclusivamente o ventrículo esquerdo. Traduz-se numa substituição do músculo cardíaco por tecido fibroso e tecido adiposo (gordura) e essa alteração da constituição do músculo vai provocar uma suscetibilidade à ocorrência de arritmias das quais a forma mais grave são arritmias fatais e a morte súbita.”

 

A evolução da miocardiopatia arritmogénica

A miocardiopatia arritmogénica evolui em duas grandes fases: “Uma fase inicial, que é a chamada fase arrítmica, em que predominam precisamente as arritmias e em que a morte súbita é o grande risco. Numa fase mais avançada, existe disfunção cardíaca, do miocárdio. Isso quer dizer que o músculo cardíaco deixa de contrair bem e, a par desses sintomas de arritmias, existem concomitantemente sintomas e sinais de insuficiência cardíaca”, explica Nuno Cardim, acrescentando que, por isso, além de se tratar a arritmia tem de se tratar também a insuficiência cardíaca, que em casos extremos pode levar ao transplante cardíaco.

 

Como identificar esta doença?

A história familiar da doença é relevante no diagnóstico da miocardiopatia arritmogénica. Segundo Luís Brandão, é frequente haver várias pessoas da mesma família com a doença. “É hereditária e é uma doença autossómica dominante na esmagadora maioria dos casos. O que é que isso significa? Significa que 50 % dos descendentes de uma pessoa com esta doença podem herdar o gene e desenvolvê-la”, explica Nuno Cardim.

Quanto aos sinais mais importantes desta doença cardíaca incluem-se “as palpitações, nomeadamente as que ocorrem com o esforço, as perdas de consciência e, na forma mais grave, a morte súbita”, enumera Luís Brandão. É muito importante que as queixas não sejam desvalorizadas.

A miocardiopatia arritmogénica é “uma causa importante de morte súbita”, afirma Luís Brandão. Nuno Cardim completa, referindo que “a miocardiopatia arritmogénica é a principal causa de morte súbita em atletas e em jovens que praticam desporto” e que, fora desse grupo, “são pessoas que não têm os habituais fatores de risco cardiovasculares do dia a dia. Em casos excecionais, a doença é detetada mais tardiamente, por volta dos 40 ou 50 anos”. Mas também pode ter outras consequências: “Em formas mais agressivas pode também condicionar uma redução na esperança de vida por insuficiência cardíaca, provocar um quadro de insuficiência cardíaca avançada, com cansaço, com falta de ar, com inchaço das pernas, esse tipo de sintomas”, afirma o cardiologista Luís Brandão.

A raridade desta doença pode ser um obstáculo ao seu diagnóstico. Segundo explica Nuno Cardim, “dada a sua relativa raridade, o cardiologista geral, o cardiologista clínico, não está muitas vezes habituado a lidar com estas doenças e, portanto, tem maior dificuldade em diagnosticá-las e em tratá-las”, acrescentando que “é preciso expertise do diagnóstico destas doenças, é preciso estar alerta para a sua existência e, portanto, daí a necessidade destes doentes serem diagnosticados em centros com experiência, como são os Centros do Coração da CUF”, sublinha.

 

Sabia que...

Para diagnosticar e tratar as arritmias cardíacas há uma subespecialidade da Cardiologia: a Arritmologia Cardíaca.

 

E quando não há sintomas?

Por vezes, “os doentes são completamente assintomáticos e o diagnóstico é feito num check-up, por exemplo, um doente que vai fazer um eletrocardiograma ou um ecocardiograma de rotina e estes exames podem chamar a atenção para o diagnóstico“, explica o cardiologista Nuno Cardim.

Acima de tudo, é importante ter em consideração que esta é uma doença cardíaca de diagnóstico complexo e “requer integração de muitos dados clínicos e de exames complementares. Assim, além destes sintomas, que podem ou não estar presentes, é importante realizar:

 

Eventualmente, pode ser necessário fazer algum tipo de biópsia cardíaca, mas geralmente através da conjugação de vários exames não invasivos chega-se a este diagnóstico”, esclarece.

 

Um diagnóstico inesperado para Joana Rodrigues

Joana Rodrigues foi diagnosticada com miocardiopatia arritmogénica, uma notícia que lhe chegou de forma inesperada, quando fez exames pré-operatórios para uma cirurgia que ia fazer aos pés. “O Prof. Nuno Cardim percebeu que o ECG demonstrava algumas arritmias e outras alterações suspeitas e prosseguimos para mais exames para perceber efetivamente o que é que se passava com o coração. Fiz uma prova de esforço, um eletrocardiograma, um holter e depois a ressonância magnética com contraste para despistar todas as dúvidas” e que confirmaram a presença de anomalias, conta Joana Rodrigues.

“Receber esta notícia foi um choque enorme porque, por um lado, apesar de eu ter 47 anos, achei que ainda não tinha idade que se enquadrasse numa questão do coração, que é sempre algo que nos impõe muito respeito. Por outro lado, perdi o meu pai quando tinha 20 anos, tinha ele 48, a idade que vou fazer. De repente, achei ‘a história repete-se e estou a passar pelo mesmo’”, relembra Joana. “Mas, depois do choque inicial, pensei ‘não, a minha história não tem de ser necessariamente igual à do meu pai, se calhar, tenho aqui oportunidade para rescrever uma história diferente’”.

Apesar de Joana Rodrigues ter feito exames ao coração ao longo da sua vida, estes nunca demonstraram anomalias. Contudo, sempre teve algumas arritmias, quebras de tensão e até algum cansaço, mas acabava por justificar os seus sintomas: “As quebras de tensão eram porque tinha tensão baixa, o cansaço é porque ando sempre a mil. Eu achava normal. Nós arranjamos sempre desculpas para aquilo que sentimos e vamos esticando a corda”.

Joana Rodrigues, diagnosticada com miocardiopatia arritmogénica

Como é feito o tratamento deste problema cardíaco

“O tratamento da miocardiopatia arritmogénica visa várias vertentes” e, dentro da Cardiologia, existe uma subespecialidade - a Arritmologia de Intervenção - que “evoluiu ao longo dos últimos 20, 30 anos, à medida que se foram desenvolvendo técnicas para o tratamento de arritmias que não passavam por medicamentos”, explica Luís Brandão, esclarecendo que as técnicas desenvolvidas podem passar quer pela implantação de dispositivos quer por cateter.

Na base da prevenção primária está a “implantação de um cardioversor desfibrilhador implantável, que, no fundo, é um pacemaker especial muito diferenciado que deteta se há alguma arritmia maligna potencialmente letal e, ao detetá-la, trata-a automaticamente e, portanto, salva vidas assim”, explica Nuno Cardim.

Joana Rodrigues fala sobre a sua experiência e como decorreu a consulta antes da cirurgia: “Eu tive uma consulta com o Dr. Luís Brandão, o meu cirurgião, que me indicou que tipos de aparelho existiam - havia dois tipos de desfibrilhadores -, as vantagens e as desvantagens de cada um. Tomámos a decisão em conjunto e depois explicou-me os procedimentos da cirurgia e o pós-operatório. Ainda estava a tentar digerir a notícia, mas cheguei lá e foi uma consulta ótima, de uma hora e tal. Foi super descontraída e leve. E depois eu acho que o tema começou a ser leve, porque era inegociável.” O desfibrilhador de Joana tem uma duração de seis anos e está ligado por Bluetooth a um aparelho que, por sua vez, está ligado ao hospital e vai monitorizando todas as arritmias e todo o comportamento do coração.

Contudo, “por vezes, os doentes continuam a ter arritmias frequentes mesmo com o desfibrilhador e, nesse caso, podem ser necessários medicamentos ou uma intervenção por cateter, para ‘queimar’ zonas do ventrículo onde essas arritmias se originam e tentar dessa maneira diminuir a sua ocorrência. Nos doentes que apresentam insuficiência cardíaca, o tratamento é também feito com medicamentos e, nos casos mais graves, quando tudo falha, é possível fazer um transplante cardíaco”, explica Luís Brandão.

 

Sabia que...

Em Arritmologia de Intervenção, além do tratamento de arritmias, “foram também desenvolvidos sistemas de ressincronização ventricular, ou seja, um tipo de pacemaker ou desfibrilhador especial que ajuda a melhorar a qualidade de vida e a esperança de vida dos doentes com insuficiência cardíaca”, explica Luís Brandão.

 

A vida após a cirurgia

“Duas a três semanas após a colocação de um desfibrilhador subcutâneo, o doente pode, a partir daí, levar uma vida praticamente normal”, salienta Luís Brandão. Nesse sentido, Nuno Cardim acrescenta que “não está aconselhado por princípio continuar a fazer exercício vigoroso, de competição, porque isso aumenta o risco de descargas do desfibrilhador e, nesta doença em especial, o exercício crónico e continuado está provado que se associa à progressão da doença. Claro que pode fazer exercício físico, mas de uma forma moderada”.

 

Como podemos promover a saúde do coração?

“Embora não exista forma de prevenir o desenvolvimento da miocardiopatia arritmogénica, por ser de transmissão genética, esta é uma patologia relativamente rara e a maior parte das doenças tratadas em Cardiologia advêm em maior ou menor grau de comportamentos menos saudáveis que vamos tendo ao longo da vida”, explica Luís Brandão. O cardiologista Nuno Cardim reforça esta ideia, salientando que os conselhos para um coração saudável “são chavões que são habitualmente ditos, mas nunca é demais repeti-los”. Por isso, segundo os cardiologistas CUF, é importante:

  • Identificar e controlar os fatores de risco para doença cardíaca, que incluem hipertensão, obesidade, sedentarismo, tabagismo, dislipidemia, diabetes, menopausa precoce instantânea e história familiar da doença coronária
  • Adotar uma dieta equilibrada
  • Praticar exercício físico moderado regular
  • Não fumar
  • Evitar o consumo de álcool

 

“A grande mensagem a transmitir é que a chave está na prevenção. Mais vale prevenir do que remediar. É importante, a partir de determinadas idades, fazer uma consulta de Cardiologia de revisão, um check-up cardiológico, porque - sobretudo em doentes com fator de risco, mas também nos que não têm fatores de risco - às vezes temos grandes surpresas e deparamo-nos com mortes súbitas que temos a noção perfeita de que podiam ter sido evitadas se o doente tivesse ido ao médico e feito a sua consulta de Cardiologia preventiva”, explica Nuno Cardim, acrescentando que “devemos apostar cada vez mais na prevenção porque assim conseguimos salvar muitas vidas”.

Joana Rodrigues deixa também uma mensagem acerca da importância de se estar atento: “É muito importante cuidarmos do coração, fazermos rastreios, fazermos exames, não termos medo. Hoje em dia, eu acho que a ciência consegue responder a quase todas as situações desde que detetadas antecipadamente”.

Publicado a 09/05/2023