Neurorreabilitação após AVC: recuperar, passo a passo
Recuperar a autonomia após um AVC é um caminho muito exigente. Mas, com a ajuda da neurorreabilitação, muitas pessoas recuperam funções que julgavam perdidas.
Um acidente vascular cerebral (AVC) é uma condição médica muito grave, extremamente debilitante e que pode deixar sequelas para a vida. “O acidente vascular cerebral continua a representar um verdadeiro problema de saúde pública, na medida em que é a principal causa de morte e de incapacidade em Portugal”, afirma o neurologista Alexandre Amaral e Silva. A recuperação é um processo complexo, mas transformador, que se deve basear numa intervenção precoce e multidisciplinar. Segundo a médica fisiatra Cristina Freitas Pereira, “o programa de tratamento permite estimular o sistema nervoso a recuperar uma função perdida ou a adquirir novas funcionalidades”. Joana Costa, que passou por um AVC, resume o impacto na primeira pessoa: “Sem a reabilitação, eu não teria conseguido voltar a caminhar”.
O que é a neurorreabilitação?
A neurorreabilitação é um processo estruturado de intervenção que tem como objetivo minimizar os danos neurológicos e restaurar capacidades de uma vítima de AVC ou de outras doenças neurológicas ou neurocirúrgicas. “É um conjunto de intervenções dirigidas a doentes que sofreram danos ou lesões a nível do sistema nervoso, tais como o acidente vascular cerebral”, explica Cristina Freitas Pereira. Cada programa de tratamento é adaptado às necessidades do paciente e ajustado ao longo do tempo.
O tipo de AVC também influencia diretamente a abordagem clínica e de reabilitação, existindo dois mecanismos principais da condição, o AVC isquémico e o AVC hemorrágico. Segundo Alexandre Amaral e Silva, no AVC isquémico, ou trombose, “há uma obstrução ao fluxo de sangue, há o entupimento de um vaso, habitualmente causado por um coágulo de sangue” e isso acontece em 85 % dos casos. Já os restantes 15 % “dizem respeito ao chamado AVC hemorrágico, em que o que acontece é uma rotura do vaso”, seguida de hemorragia.
Como reconhecer um AVC?
Segundo o neurologista CUF Alexandre Amaral e Silva, “os sintomas podem surgir de forma muito rápida, em segundos ou minutos, e muitas vezes são ignorados”. Saber identificar os 3 Fs ou sinais de alerta de AVC faz toda a diferença:
- FALA - Dificuldade em falar;
- FACE - Boca ao lado (assimetria facial);
- FORÇA - Falta de força num braço ou de um lado do corpo.
“Em cerca de 30 a 40 % dos casos de AVC, os doentes tiveram sintomas semelhantes nos dias ou semanas anteriores”, acrescenta o neurologista, referindo-se aos acidentes isquémicos transitórios (AIT). Estar atento e procurar um médico após esses momentos é essencial.
A urgência de iniciar a neurorreabilitação
De acordo com a especialista em Medicina Física e Reabilitação Cristina Freitas Pereira, o processo de reabilitação “deve começar o mais rapidamente possível, idealmente nas primeiras 24 a 48 horas, desde que o doente esteja clinicamente estável”. Isto porque “os estudos mostram-nos que uma intervenção precoce, com equipas multidisciplinares treinadas, permite ter melhores resultados imediatos e depois a longo prazo”.
Já Alexandre Amaral e Silva acrescenta que “quanto mais depressa resolvermos a obstrução do vaso e voltarmos a fornecer o sangue de que o cérebro necessita, maior é a probabilidade da recuperação ser favorável”. Foi essa a experiência de Joana Costa, que, apesar da gravidade do seu AVC, a rapidez com que foi levada para o hospital e - depois de cirurgia e tratamentos - integrada num plano de reabilitação intensivo, permitiu-lhe iniciar progressos ainda durante o internamento hospitalar.
Benefícios de uma abordagem multidisciplinar
A neurorreabilitação envolve uma abordagem vasta e personalizada. “Podemos ter reabilitação motora com fisioterapia, terapia ocupacional para reaprendizagem de tarefas, terapia da fala para comunicação e deglutição, e também terapias cognitivas quando há défices de memória ou atenção”, detalha a médica fisiatra:
- Fisioterapia: melhoria da força muscular, marcha, coordenação;
- Terapia da fala: linguagem, articulação e deglutição;
- Terapia ocupacional: atividades da vida diária e autonomia;
- Reabilitação cognitiva: memória, atenção e raciocínio;
- Enfermagem de Reabilitação: assistência/treino de atividades de vida diária, capacitação do cuidador;
- Educação ao cuidador: estratégias de suporte e prevenção.
Também se utilizam tecnologias como ortóteses ou terapia de espelho. “Quando o doente não consegue levar o garfo à boca, usamos talheres adaptados; se há risco de queda, colocamos uma ortótese para estabilizar o pé”, exemplifica. A aplicação prática destas abordagens fica evidente na recuperação de Joana, que beneficiou de fisioterapia, terapia ocupacional e apoio emocional num plano articulado que se ajustava semana após semana.
Outro aspeto relevante é o envolvimento de toda a equipa. “Fazemos reuniões clínicas frequentes, onde discutimos caso a caso. Isso permite ajustar estratégias, partilhar observações entre profissionais e evoluir de forma coordenada”, explica Cristina Freitas Pereira.
Também Alexandre Amaral e Silva destaca o papel fundamental da abordagem multidisciplinar na recuperação após um AVC. “Aquilo que sabemos de forma clara é que, quando avaliamos comparativamente doentes que tiveram acesso a estes programas multidisciplinares, intensivos, multimodais comparativamente com os doentes que não o tiveram, os ganhos são incomparavelmente superiores”, explica o neurologista. Ao juntar várias especialidades, procura-se incluir “tudo aquilo que permita maximizar a recuperação dos défices neurológicos numa primeira fase e, numa fase mais a médio-longo prazo, a aquisição de novas competências e a recuperação da funcionalidade”, detalha Alexandre Amaral e Silva.
Tecnologia de ponta na neurorreabilitação
Além do uso de ferramentas adaptadas, que ajudam os pacientes a superarem as limitações físicas, o neurologista lembra ainda que existem “imensas tecnologias, imensos dispositivos que permitem maximizar essa recuperação”. “Estamos a falar de instrumentos de robótica, de novas tecnologias como a realidade virtual para a estimulação cognitiva e o desenvolvimento ou reaquisição das capacidades intelectuais que o doente perdeu com o AVC”, indica Alexandre Amaral e Silva, destacando ainda “dispositivos mais elaborados, verdadeiras comunicações entre cérebro e computador, para potenciar a reaquisição de funções cerebrais que se perderam com o acidente vascular cerebral ou com outras patologias neurológicas e neurocirúrgicas”.
Neurorreabilitação: tratamento individualizado é essencial
Outra característica essencial no trabalho de neurorreabilitação após AVC é ser feito em locais com as valências certas e adaptado a cada caso em particular. “Os doentes assistidos em unidades de AVC especializadas com equipas multidisciplinares têm melhores resultados funcionais, não só imediatos, mas também a longo prazo”, afirma Cristina Freitas Pereira, reforçando que “este programa é sempre individualizado e depende muito das necessidades identificadas” em cada doente. “Cada paciente deve receber uma abordagem personalizada, especialmente nas primeiras semanas após o AVC, quando o cérebro está mais recetivo a mudanças”, completa Alexandre Amaral e Silva.
Como se processa a recuperação?
Embora os maiores avanços ocorram nos primeiros meses após o AVC, a recuperação continua muito além desse período. “A maior parte da recuperação ocorre sobretudo nos primeiros três a seis meses, pelo que é importante otimizarmos e começarmos o quanto antes”, indica Cristina Freitas Pereira, o que “não significa que após este período não haja recuperação, mas habitualmente vai sendo mais lenta”. A médica fisiatra afirma ainda que “há outros fatores que podem ser também importantes, nomeadamente a idade do doente, a existência de comorbilidades prévias, ou se acontecer um atraso no início do programa de reabilitação”.
Alexandre Amaral e Silva lembra, por outro lado, que a reabilitação visa a reintegração plena do paciente na vida diária: “Não basta recuperar a força, é necessário recuperar também a função”. De acordo com o neurologista, “uma parte importante dos ganhos que o doente tem com o tratamento de fase aguda, perde-se, infelizmente, e isto é a realidade portuguesa também, por os doentes após a alta hospitalar terem frequentemente um período em que não têm acesso a estes programas de reabilitação”. Para Alexandre Amaral e Silva, “conseguir que o doente comece precocemente, de forma intensiva e contínua adaptada às suas necessidades, este programa de reabilitação traduz-se em ganhos e em mais-valias”.
Quando a recuperação total não é possível
“Mesmo em pessoas que não recuperam totalmente, a reabilitação continua a ser importante”, explica também a médica especialista em Medicina Física e Reabilitação, “porque nos vai permitir, de alguma forma, continuar a estimular a mobilidade do doente e tentar diminuir o grau de dependência”. Outra faceta necessária é “o apoio emocional e psicológico”. Segundo Cristina Freitas Pereira, os doentes “muitas vezes têm depressões, sofrem de ansiedade, porque realmente veem o tempo a passar e que a sua recuperação não vai ser, se calhar, aquela que é esperada”. Os médicos, neste caso, devem “transmitir muito esta ideia de que o objetivo é recuperar a funcionalidade, mesmo que com algumas adaptações”.
Como recuperar em casa?
O processo de recuperação de um doente com AVC deve continuar em casa, com algumas alterações no estilo de vida. Alexandre Amaral e Silva destaca que “o doente, quando volta para casa deve modificar comportamentos”, procurando manter “estilos de vida saudáveis, uma alimentação saudável, a nossa Dieta Mediterrânica, a redução do consumo de sal, do consumo de gorduras, do consumo de açúcares”. E também adaptar o espaço às suas capacidades: “Porque em última análise o que nós queremos é que o doente volte à sua vida prévia o mais íntegro possível e, portanto, as próprias atitudes, atividades que leva a cabo no quotidiano funcionam como forma de potenciar o seu processo de reabilitação”.
Cristina Freitas Pereira lembra que é essencial que “adote em casa muitas medidas no sentido de prevenirmos algumas complicações”, isto porque a capacidade física e a mobilidade estão normalmente afetadas. “Uma das que eu costumo insistir, particularmente logo desde uma fase inicial, é a prevenção do risco de quedas”.
Segundo Alexandre Amaral Silva, as principais mudanças em casa passam por “assegurar que o doente se possa locomover em segurança no seu domicílio”, e podem incluir:
- Alteração de espaços / realização de pequenas obras para facilitar a deslocação;
- Reconfiguração das casas de banho;
- Abolição de escadas;
- Retirada de tapetes;
- Remoção de parte dos móveis para tornar os espaços mais amplos.
Para o neurologista, trata-se de “colocar o dia a dia, este retorno à vida quotidiana, ao serviço da própria reabilitação”.

Após um AVC, muitas pessoas enfrentam um processo de recuperação, cuja duração e tipologia varia muito de caso para caso. Para uma maior flexibilidade e adaptação às necessidades e preferências do doente, os Cuidados Domiciliários CUF permitem fazer a reabilitação no conforto de casa. Estes serviços podem incluir fisioterapia, terapia da fala, terapia ocupacional, entre outros.
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As conquistas de Joana Costa
Joana Costa andava cansada e com algumas preocupações e fazia ginástica pela sua saúde. Foi precisamente numa dessas sessões que sofreu um AVC. “Senti uma sensação esquisita na cabeça, parecia uma espécie de estalo”, conta, “e logo a seguir, perdi a força no braço e deixei cair o peso. Ao tentar levantar o peso novamente, percebeu que o braço não tinha força. “Apercebi-me de que a perna também já não tinha força, a perna esquerda, e caí para o chão”, recorda.
Com diagnóstico de AVC e uma cirurgia passados uns dias, Joana começou o longo processo de reabilitação intensiva. “Ao princípio nem o pescoço mexia, até a cabeça estava caída”, conta, “depois, à medida que fui evoluindo, já comecei a conseguir recuperar mais”. Chegou a pensar que saía do hospital a andar, em 15 dias, mas depois percebeu que a recuperação não decorria assim: “Comecei a andar sem cadeira de rodas quatro ou cinco meses depois. As coisas demoram muito tempo. Isso foi o maior desafio”.
Com toda a fisioterapia e outras terapias, é um processo lento, multidisciplinar, os resultados notam-se muito gradualmente, mas Joana sente que tem feito uma grande evolução. E isso reconhece que se deve também ao apoio médico que teve na CUF. “Desde os médicos, às enfermeiras, todos os terapeutas, sempre impecáveis, e isso faz muita diferença porque a pessoa está numa situação de fragilidade muito grande e ter pessoas que ao fim e ao cabo estão a tomar conta de nós, serem carinhosas e cuidadosas, faz toda a diferença”.
Foi também graças a todo esse trabalho de recuperação e todo esse apoio que, um ano depois, conseguiu fazer uma viagem a Itália: “Fiz anos de casada, fui a Roma com o meu marido e andei em média 6 km por dia. Sempre com a ajuda do bastão, mas aguentei”. Hoje, Joana Costa vê a vida de outra maneira: “O AVC muda muito a perspetiva de vida das pessoas. Coisas a que eu dantes dava importância, ou fazia um drama, hoje em dia relativizo. Também dou valor a coisas muito mais simples que dantes não dava: ver o pôr do sol, dar um passeio, coisas simples”.