A cirurgia no tratamento da obesidade

A cirurgia pode devolver à pessoa com obesidade a qualidade (e anos) de vida que de outra forma não conseguiria alcançar. Conheça as diferentes técnicas.


A obesidade é uma doença crónica e multifatorial, um problema de saúde pública, complexo e desafiante, que afeta milhões de pessoas em todo o mundo. Além disso, as evidências mostram que os números têm vindo a aumentar, pelo que “a obesidade está bem definida atualmente, desde que a Organização Mundial da Saúde a considerou uma pandemia do século XX/XXI”, afirma José Morais e Castro, cirurgião geral CUF. Em Portugal, a prevalência da obesidade tem vindo a aumentar de forma constante ao longo dos anos, ultrapassando a média da União Europeia, e conduzindo a encargos significativos de saúde em termos económicos.
De acordo com a OMS, a cirurgia mostra ser o método mais eficaz para reduzir e manter a redução do peso em doentes com obesidade severa. Como resultado, cada vez mais doentes estão a recorrer à cirurgia da obesidade como uma potencial solução para os ajudar a controlar o seu peso e a melhorar a sua saúde em geral.
José Morais e Castro e Ricardo Zorrón, cirurgiões gerais CUF, explicam o que é a cirurgia bariátrica e metabólica, as técnicas cirúrgicas disponíveis e os mitos em torno da obesidade e dos seus tratamentos.



A cirurgia da obesidade e os seus mitos

Apesar das suas causas estarem bem definidas, ainda existem muitos mitos ligados à obesidade e ao seu tratamento através da cirurgia.

 

Mito #1: O doente é obeso porque quer

“Hoje em dia, sabemos que há fatores genéticos e endócrinos que condicionam que o doente tenha um apetite permanente. Há casos de doentes, numa percentagem relativamente baixa, mas que estão descritos, que têm ausência de uma hormona que leva à sensação de saciedade e, portanto, o doente sente sempre fome e tem tendência a querer comer permanentemente”, esclarece José Morais e Castro, cirurgião geral.

 

Mito #2: A cirurgia é muito radical em termos de tratamento

“A cirurgia é bem mais eficiente” e “é o único tratamento efetivo para uma obesidade grave”, afirma o cirurgião geral CUF Ricardo Zorrón, acrescentando que permite ao doente não ter mais complicações da doença, assim como ter uma maior expectativa de vida. “Quando operamos um doente de 30 anos com uma obesidade severa, esse doente tem uma chance muito menor de morrer precocemente do que o doente que não foi operado e continua com aquele peso, com aquela doença. Podemos ganhar com isso oito a dez anos de expectativa de vida para esses doentes. Isso é uma coisa muito boa que a cirurgia traz”, explica.

 

Mito #3: O doente fica dependente de medicamentos após a cirurgia da obesidade

“É necessária a reposição de vitaminas e o doente tem de ser seguido pelo médico ao longo da vida”, contudo, estes cuidados são menores do que aqueles que o doente precisaria de adotar caso não fizesse a cirurgia, como ”tomar medicação diariamente para a diabetes e para a hipertensão arterial, usar máscara de CPAP (máquina de pressão positiva para tratamento da apneia do sono)… A diabetes fica controlada na semana seguinte a uma cirurgia de bypass, por exemplo. Existem muitas vantagens, mais do que desvantagens da cirurgia”, explica Ricardo Zorrón.

Mulher com obesidade faz alongamentos

Como se mede a obesidade?

Antes de qualquer tipo de tratamento, o primeiro passo é medir e classificar a obesidade. “Temos de ter um parâmetro físico e esse parâmetro chama-se Índice de Massa Corporal (IMC), que estabelece uma relação entre o peso e a altura. Conseguimos classificar os doentes em várias escalas de obesidade: a obesidade classe 1, classe 2 ou classe 3, sendo que a partir do IMC 30 (classe 1) já é considerada uma pessoa obesa”, explica José Morais e Castro, que acrescenta: “Como em quase todas as doenças, a primeira abordagem deve ser prioritariamente médica ou higiénica. Quer dizer, fazer uso de um regime alimentar adequado, eventualmente medicação e exercício físico. Na falência disso, então, sim, entra a cirurgia como uma solução, não definitiva, mas uma solução duradoura e de grande eficácia”.

 

Cirurgia da obesidade: a quem deve ser indicada?

Os especialistas calculam que, nas próximas décadas, as indicações para a cirurgia metabólica e bariátrica continuarão a evoluir não só para tratar a obesidade, como também para prevenir o seu desenvolvimento em indivíduos de alto risco. “A cirurgia é, atualmente, o único método efetivo para conseguir uma perda de peso expressiva durante toda a vida” e, comparativamente às técnicas convencionais (como adoção de dietas), ”é mais efetiva em conseguir mais anos de vida e livrar o doente das doenças acessórias, das complicações da obesidade”, refere Ricardo Zorrón.
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Mas nem todas as pessoas com obesidade são candidatas à cirurgia, pelo que o processo de seleção de doentes obedece a critérios bem definidos: “É necessária uma avaliação por uma equipa multidisciplinar, que inclui o cirurgião, um internista ou endocrinologista, um nutricionista e um psicólogo. E o doente tem que passar por essas fases de avaliação para sabermos se é um bom candidato a cirurgia. Esta cirurgia, como qualquer outra, tem os seus riscos e não podemos correr um risco que leve a que o doente possa ter um mau resultado ou uma complicação por uma má avaliação prévia”, explica José Morais e Castro. Sendo assim, “a cirurgia considera-se sempre que há falência de um tratamento médico apropriado durante um período de tempo que se considera clinicamente recomendável e em que o doente realmente não teve uma baixa de peso que seja considerada aceitável para a sua saúde”. Ricardo Zorrón complementa, referindo que a cirurgia da obesidade deve ser indicada na doença mais grave, na obesidade mais severa, “em que o doente não consegue, pelos meios normais, um peso abaixo do IMC de 30”. Acrescenta ainda que “a cirurgia está indicada para doentes que tenham complicações dessa obesidade severa, como diabetes, hipertensão arterial e apneia de sono, por exemplo, e doentes que não conseguem tratar essa obesidade ao longo da vida efetivamente”.

 

Em situações de doentes com obesidade severa, a cirurgia bariátrica e metabólica tem demonstrado um índice de sucesso de 70 a 90 %, sendo, portanto, o recurso terapêutico mais eficaz para a maioria dos pacientes. ”Obviamente que nada é eterno, mas a cirurgia é, até ao momento, o meio de tratamento da obesidade que dá efeitos mais prolongados no tempo e com maior eficácia. O tratamento médico pode ser eficaz enquanto o doente faz a medicação, mas quando para há um ganho de peso, o que não quer dizer que o mesmo não possa acontecer com a cirurgia, mas só ao fim de alguns anos e sempre numa percentagem baixa”, confere José Morais e Castro.

 

“A obesidade é uma doença crónica, não tem cura, tem controlo. A cirurgia deve ser encarada como um instrumento que nós damos ao doente para que ele possa mudar de vida, que lhe permita ter uma sensação de saciedade quando se alimenta, e que possa colher os benefícios dessa redução de peso. Isso implica que o doente tenha sempre em mente que a vida dele mudou. Há trabalho, há um compromisso entre a equipa e o doente. E se um desses elementos falha o compromisso, o resultado fica aquém do esperado”, explica José Morais e Castro.

 

Cirurgia da obesidade: as técnicas disponíveis

A cirurgia bariátrica evoluiu muito nos últimos anos e refere-se a uma série de procedimentos que uma pessoa com obesidade pode realizar para reduzir a ingestão de alimentos e, consequentemente, perder peso. Segundo explica Ricardo Zorrón, atualmente já não se faz a chamada cirurgia aberta, optando-se antes por métodos menos invasivos, com pequenos cortes, e também por cirurgias de redução do estômago sem nenhuma cicatriz, por via oral.

Quanto às técnicas, existem diferentes tipos, sempre escolhidas tendo em consideração cada caso específico. “Não há uma técnica definida, uma técnica padrão para todos os doentes”, salienta José Morais e Castro, acrescentando que “tem de ser ajustada a cada doente, mas a maioria deles, no nosso país, pelo menos, cabe dentro destas duas técnicas: sleeve ou bypass. No caso dos doentes super obesos, é necessário fazer uma técnica que seja muito mais restritiva em termos metabólicos e aí podemos ter que optar por um SADI-S ou por uma derivação biliodigestiva”. Ricardo Zorrón completa ainda referindo que “antigamente, tínhamos somente a banda gástrica e o bypass. A banda já não deve ser indicada. É um método completamente obsoleto e temos técnicas muito mais modernas, como o sleeve gastrectomy, que é o sleeve gástrico, o bypass gástrico, as variações do bypass gástrico, e temos também as novas técnicas endoscópicas em que fazemos esse procedimento sem uma cirurgia real, ou seja, é feito tudo por via oral, evitando os riscos de uma eventual cirurgia”, explica Ricardo Zorrón.

 

Bypass gástrico

“O bypass gástrico envolve uma cirurgia muito efetiva, muito eficiente a longo prazo para obesidade mais grave e envolve uma redução do estômago, mas também uma hipoabsorção, ou seja, um bypass para o intestino, em que nem tudo que o doente come vai ser absorvido”, explica Ricardo Zorrón.

 

Sleeve gástrico

“O sleeve consiste em transformar o estômago num tubo. Portanto, é uma técnica eminentemente restritiva. A quantidade de estômago disponível é muito menor do que o normal, mas não é só restritiva. Também tem alguma interferência a nível das hormonas produzidas pelo próprio estômago, o que leva a que contribua para a sensação de saciedade precoce que o doente tem”, explica José Morais e Castro.

 

Endosleeve, uma derivação do sleeve gástrico

Esta técnica, que consiste num sleeve gástrico endoscópico, foi desenvolvida pela equipa cirúrgica da CUF há mais de dez anos, sendo agora utilizada no mundo inteiro, afirma Ricardo Zorrón, explicando ainda como é feita: “Colocamos um aparelho através de endoscopia até ao estômago e fazemos costuras apenas no interior do estômago” e, como resultado desta intervenção, há uma sensação de “saciedade precoce, esse doente vai se alimentar com uma pequena quantidade”. Além de o doente não ficar com cicatrizes exteriores na zona abdominal, esta técnica permite uma grande efetividade na perda de peso, conclui.

 

O tempo de recuperação destes procedimentos varia de doente para doente. Em média, ao fim de um mês o doente retoma as suas atividades habituais, retomando uma alimentação adaptada progressivamente.

 

Cuidados a adotar após a cirurgia de obesidade

A obesidade, como doença crónica que é, tem de ser tratada durante toda a vida. Como refere Ricardo Zorrón, “com o auxílio da cirurgia e de outras técnicas, conseguimos controlar essa doença de uma maneira diferente de uma dieta. E a tendência não é de recuperar esse peso, a não ser que a técnica cirúrgica tenha sido mal escolhida no início”. Assim sendo, ao longo da vida, após a cirurgia de obesidade, o doente tem, a cada seis meses, uma consulta para verificar se tem alguma deficiência em vitaminas. Alguns doentes precisam de uma cirurgia plástica depois de perder todo aquele peso. Mas a cirurgia é sempre compensatória nestes casos, porque o doente ganha muita saúde e, na maioria dos casos, fica muito feliz com o procedimento cirúrgico”.

 

Os cuidados a adotar após a cirurgia estão relacionados, sobretudo, com o modo de vida do doente, com o seu regime alimentar - por isso, deve ser acompanhado por um nutricionista -, e com os seus hábitos sociais e de exercício físico. José Morais e Castro, reforça este último ponto: “A qualidade de vida do doente muda brutalmente após perder peso e para isso vai precisar também de massa muscular e daí um programa de exercício físico ser importante”. E acrescenta: “As vantagens da cirurgia para o tratamento da obesidade têm que ver com a sua eficácia e com o seu efeito durável.”

Fontes:

Medical News Today, fevereiro de 2024

National Library of Medicine, National Center for Biotechnology Information, fevereiro de 2024

OECD/European Observatory on Health Systems and Policies (2023), Portugal: Country Health Profile 2023, State of Health in the EU, OECD Publishing, Paris

Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável da Direção-Geral da Saúde, fevereiro de 2024

Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade, fevereiro de 2024

World Obesity Federation, fevereiro de 2024

Publicado a 04/03/2024